Por que é que o filme “Ainda estou aqui” merece ganhar todos os óscares para os quais está nomeado (contém spoilers)

Arquitetura, escultura, pintura, música, dança, literatura, cinema. Para o teórico italiano Ricciotto Canudo, o cinema é considerado a sétima arte, porque é a síntese das outras formas de arte existentes. De facto, esta teoria comprova aquilo que o cinema é capaz de fazer; fazer-nos sentir de uma forma realmente completa, já que nos estimula vários sentidos ao mesmo tempo. E quando sentimos assim, refletimos. É exatamente isto que Ainda Estou Aqui entrega: um soco emocional que nos leva a encarar o passado para entender os perigos do presente.

Narrativa

Baseado nas memórias de Marcelo Rubens Paiva, o filme transporta-nos para os turbulentos anos 70, durante a ditadura militar brasileira. A trama centra-se em Eunice Paiva, interpretada magistralmente por Fernanda Torres, uma mãe e advogada que enfrenta o desaparecimento do seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, interpretado por Selton Mello. A narrativa explora a resiliência de Eunice enquanto procura justiça e respostas no clima de repressão política de então. E fá-lo enquanto tenta vir à tona e respirar, já que ela própria também é perseguida, juntamente com os seus 5 filhos, tentando, ao mesmo tempo, protegê-los.

Um filme muito necessário

Se quiséssemos representar um dos poucos momentos de convergência política da atualidade num diagrama de Venn improvisado, é que vivemos um momento delicado.

E este momento delicado, para quem vos escreve, (para outras perspectivas será diferente, claro), resume-se bem pela ascensão de governos autoritários, pela relativização da democracia e pelo revisionismo histórico que se torna cada vez mais o pão nosso de cada de dia. E é por isto que Ainda Estou Aqui é uma obra urgente. O filme não apenas narra uma história real da ditadura militar brasileira, mas é um alerta sobre os ciclos da história e os perigos da intolerância política.

Porque merece o Óscar de melhor filme?

O óscar tem o poder de dar visibilidade a histórias que o mundo precisa ouvir.

Além de ser um filme tecnicamente brilhante, de guião irrepreensível e interpretações geniais (a fotografia não me arrebatou mas também não senti falta de poesia visual já que estava concentrada noutras coisas), ao ser premiado com o mais alto dos galardões, a obra alcançaria um público global, levando a sua mensagem de resistência a países onde a extrema-direita cresce e tenta reescrever o passado para justificar abusos no presente. Seria um reconhecimento do cinema como ferramenta de luta pela verdade e um recado claro de que a memória e a justiça são inegociáveis.

Além disto, no filme conhecemos a história real da família Paiva, que esperou 17 (!!!!) anos, pelo atestado de óbito de Rubens. Durante este período o governo brasileiro não assumiu a responsabilidade pelo seu desaparecimento. No filme, é retratado o momento emocionante em que Eunice recolhe o atestado, como prova do que realmente aconteceu e o Óscar para o filme seria, para o legado desta família que representa tantas outras, uma forma de amplificar a história para uma esfera de sensibilização e de exemplo para impedir que a História se repita.

E a Fernanda Torres, o de melhor atriz principal?

Não há dúvidas de que Fernanda Torres entrega uma das performances mais impressionantes do ano. A sua Eunice Paiva é um retrato nu e cru da dor e da resiliência, sem nunca cair no melodrama fácil. A atriz carrega o filme com uma entrega absoluta, que nos faz sentir cada suspiro de esperança e cada lágrima sufocada pela injustiça. É mesmo, something else.

Ainda, o óscar de Melhor Atriz não seria apenas um reconhecimento do seu talento, mas também um tributo às mulheres que enfrentaram regimes totalitários de cabeça erguida, muitas vezes sozinhas e lutaram pela justiça e dignidade.

Esqueçamos por momentos o lado político. O filme é sobre direitos humanos e a força inabalável do espírito humano diante das adversidades. E isto, não é, ou não deveria questionável. Se é, e agora voltamos à política novamente, cabe-nos a todos saber posicionar do lado certo e errado da história.

#TheGlitterDream